“O Que Ficou Para Trás” conta a história de um casal do Sudão do Sul que vai à Inglaterra como refugiados em busca de melhores condições de vida. Lá, eles são destinados a ficar em uma casa capaz de atormentá-los.
O longa está disponível na Netflix.
Terror Social
Poucos gêneros são tão capazes de comunicar por meio de alegorias como o terror. Apesar de não ser uma novidade, não seria loucura dizer que o terror social vive uma nova onda, comandada pelo excelente Jordan Peele (“Corra”, “Nós”). Como todo movimento cinematográfico, o sucesso do estilo faz com que novas obras surjam para replicar ou expandir os conceitos estabelecidos. Por sorte, esse subgênero tem apresentado uma boa vertente autoral, sobretudo com cineastas jovens que buscam contar novas histórias.
Esse é o caso de “O Que Ficou Para Trás”, novo filme produzido pela BBC e distribuído pela Netflix, que marca a estreia de Remi Weeks em longas. Apesar de construir personagens atormentados por eventos traumáticos e assombrados por uma casa repleta de espíritos (elementos bastante recorrentes no gênero), a obra consegue se desenvolver por meio de vários subtextos atuais e históricos que, se não são inovadores, receberam aqui um tratamento diferenciado e complexo.
Dessa forma, o espaço surge mais do que como uma simples casa mal assombrada, ele se transforma em um instrumento de enclausuramento e repressão para esses dois personagens principais, refugiados do Sudão do Sul na Inglaterra. Weeks não precisa recorrer a personagens secundários verbalizando a xenofobia (apesar disso acontecer em pequena escala), já que a casa é funciona muito melhor, representada pelo espaço inóspito que não permite uma vida àqueles personagens. Isso aparece desde o design de produção e fotografia do local, cheio de buracos na parede, sujeira e uma escuridão predominante, até a desconstrução espacial e temporal, que reforça um questionamento entre o que realidade e o que é sonho (a prática xenofóbica de tentar tratar o estrangeiro como louco).
Assim, fica a cargo dos ingleses apenas ditar as regras do jogo, revestidos de homens brancos “amigáveis”, eles avisam o casal sobre como precisam agir para serem aceitos naquele país, uma clara, mas sutil, repressão que obriga os imigrantes a aceitarem a cultura, a religião e o modo de vida local, ao mesmo tempo que reforça a visão racista e colonialista europeia de que o negro tem que ser “bom”, ou seja, precisa se deixar ser controlado por aqueles que se julgam superiores.
O passado no presente
Então, impossibilitados de retornar a seu país de origem (onde ocorre uma guerra civil), o casal deve reagir a um mundo novo que não os aceita. Enquanto o marido (Sope Dirisu) tenta se adaptar e aceitar as regras impostas a ele, em uma tentativa de se esconder do seu passado, a esposa (Wunmi Mosaku) prefere resistir e defender suas origens a todo custo. Tais escolhas engrandecem o arco dos personagens, pois, por mais que simpatizemos mais com uma das duas visões, entendemos que ambos apresentam suas justificativas e representam muito bem como os negros historicamente foram colocados em dilemas de aceitação e repressão.
Não é à toa também que Weeks mostra já na segunda cena os barcos repletos de africanos fazendo uma viagem pela qual muitos não sairão vivos. Por mais que possua um significado mais direto, já que até hoje pessoas que vivem em países da África ainda enfrentam essa realidade em busca de uma vida melhor na Europa, não há como deixar de traçar um paralelo entre atualidade e os séculos de tráfico negreiro, deixando claro que a situação do mundo não mudou tanto assim, ao mesmo tempo que o atual é um resultado do histórico.
Mas, mais do que apenas apresentar a proximidade entre tempos tão distantes e os dilemas da identidade, Weeks faz um bom trabalho ao integrar os dois personagens a essas questões, e, não, deixá-los apenas como objetos para alegorias. Os arcos são bem definidos e o social e o cultural os transformam sem nunca se impor a ponto de esconder a personalidade do casal.
Portanto, apesar de não ser totalmente original na forma como utiliza os elementos do terror (ainda que seja capaz de construir momentos aterrorizantes, sobretudo com um jogo de luz e sombras), “O Que Ficou Para Trás” se prova mais um importante exemplo dessa nova onda do terror social, além de uma bela adição de catálogo para a Netflix.
Nota: 7.5
Assista ao trailer:
Ficha Técnica:
Título original: His House
Data de lançamento: 30 de outubro de 2020
Direção: Remi Weeks
Elenco: Wunmi Mosaku, Sope Dirisu, Matt Smith
Gêneros: Terror, Drama
Nacionalidade: Inglaterra