“Estou Pensando Em Acabar Com Tudo” adapta o livro de mesmo nome que conta a história de uma mulher que viaja com o namorado para conhecer os pais dele, ao mesmo tempo que pensa em acabar com o relacionamento. Coisas estranhas acontecem no local e começamos a questionar o que é ou não realidade.
Evolução do Kaufman
É inegável que Charlie Kaufman (“Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”, “Quero Ser John Malkovich”) é um dos roteiristas mais brilhantes e originais que Hollywood já viu. Bebendo da fonte do cinema surrealista, ele sempre cria experiências sensoriais sobre a mente humana e questões existências como a morte e o sentido da vida.
Porém, após uma década de sucesso, o roteirista decidiu se arriscar na direção em 2008 com “Synecdoche, New York”, de longe o filme mais maluco e sem freios que tinha escrito até então. Muitos apontaram na época que o roteiro precisava da direção de Spike Jonze ou Michel Gondry (dois parceiros recorrentes do roteirista) para moldá-lo e dar foco à estória, o que eu acho um tanto injusto.
Sete anos se passaram até Kaufman voltar à direção, com a ótima animação “Anomalisa”, e 12 para retornar ao comando de um live-action: “Estou Pensando Em Acabar Com Tudo”. Entretanto, a espera foi justificada e o cineasta se mostra muito mais maduro do que em seu primeiro trabalho, que já considero muito bom.
Kaufman entendeu ainda melhor como as ferramentas do cinema são capazes de engrandecer a sua estória e constrói aqui uma rica experiência sensorial graças a um belíssimo trabalho visual e sonoro. Claro que a parceria com o excelente diretor de fotografia Lukasz Zal pode ter ajudado no processo, mas acredito que o maior mérito parta mesmo de Kaufman.
O estranhamento psicológico da estória ganha vida com a atmosfera inquietante proposta pelo diretor. A começar pelo sutil porém desconfortável trabalho sonoro, marcado por elementos diegéticos, como o limpador do carro e a nevasca fora da casa, e não diegéticos, como a bela porém opressiva trilha sonora, que mesmo quando suave parece esconder algo.
Todavia, o grande destaque vai mesmo para toda a composição visual. A tela mais quadrada ressalta desde o início o valor claustrofóbico e aprisionante do enredo, o que reflete exatamente como a personagem se sente. Os movimentos suaves de câmera constroem a narrativa em um ritmo suave, ao passo que Zal cria contrastes entre o depressivo verde da casa ou do branco da neve caindo em torno do carro com cores mais vivas, como na cena da sorveteria. Além disso, são vários os planos que sugerem os personagens sendo espionados, criando assim uma sensação constante de incerteza e perigo.
E se esses elementos já não fossem sensoriais o suficiente, Kaufman propõe uma desconstrução quase que completa do espaço, do tempo e da lógico assim como conhecemos. Personagens mudam de idade e de estado de saúde de um plano para o outro, vemos cenas serem refutadas pouco tempo depois, a personagem central muda de nome e de profissão o tempo todo, personagens tem atores trocados no meio da cena, entre várias outras escolhas que vão soar bizarras para os espectadores mais desavisados que desconhecem a carreira do cineasta.
Dessa forma, sem saber em que confiar ou como criar uma coerência narrativa, somos obrigados a mergulhar e nos entregar a esse universo sensorial e surrealista proposto por Kaufman. Sentimos a sensação de acompanhar um longo sonho ao mesmo tempo que somos convidados a fazer parte por meio das várias olhadas que a protagonista dá para câmera, criando uma sugestão nunca concretizada da quebra da quarta parede.
Estória e adaptação
Além de evoluir como diretor, Kaufman segue sendo um dos melhores contadores de estória do cinema atual. Em “Estou Pensando Em Acabar Com Tudo”, ele teve a missão de adaptar um livro dito impossível de ser adaptado. Obra pela qual ele é apaixonado. Assim, vemos o roteirista captando a essência da estória original, mas fazendo respeitosas alterações (incluindo o final) que engrandece o drama atmosférico e rejeita um pouco, mas não por completo, o terror psicológico do livro. Fica claro que o cineasta utiliza muitos elementos deste gênero, mas isso nunca ganha mais destaque do que o fator emocional e psicológico das personagens.
Ademais, o cineasta se utiliza da estória para criar personagens que discutem frequentemente temas existências e filosóficos (o que quase sempre funciona), marca na carreira de Kaufman. Para isso, usa e abusa de referências da literatura, do teatro, da música e do cinema (sendo a mais clara “Uma Mulher Sob Influência”, que tem um peso importante na narrativa). Mas, diferente do clichê hollywoodiano de usar referências para criar piada, Kaufman as utiliza para desconstruir ainda mais a lógica do universo ficcional, misturando outras artes à sétima arte.
Entretanto, sobre a estória em si prefiro não falar para não estragar a experiência de ninguém. O “saber pouco” antes de assistir a esse filme não é só uma questão de não tomar spoilers, mas de permitir que cada um sinta e interprete o filme da sua própria forma. Mais do que entender a obra, os espectadores precisam senti-la. Fico feliz que a Netflix tenha apostado em um projeto tão ousado.
Nota: 8.0
Assista abaixo à crítica em vídeo que eu fiz do filme em meu canal, o 16mm.
Assista ao trailer:
Ficha Técnica:
Título original: I’m Thinking of Ending Things (Estou Pensando Em Acabar Com Tudo)
Data de lançamento: 4 de setembro de 2020
Direção: Charlie Kaufman
Elenco: Jessie Buckley, Jesse Plemons, Toni Collete mais
Gêneros: Drama, Terror Psicológico
Nacionalidade: EUA