“Hamilton” é uma gravação do musical da Broadway de mesmo nome que conta a história de Alexander Hamilton, primeiro secretário do tesouro dos Estados Unidos e peça central para o país conseguir vencer a Guerra de Independência contra a Inglaterra.
Filme ou teatro?
Infelizmente, essa excelente obra de arte vem gerando mais discussão sobre a sua relação com o cinema do que pela qualidade dela. Por isso, encerrarei essa discussão logo de início para não perder mais tempo com o que julgo menos importante. Independente do lançamento para o Disney+, de ter sido gravado a partir de apresentações diferentes da mesma peça e montado para simular uma unidade fílmica, “Hamilton” não é um filme, e, sim, uma peça filmada.
A Disney tenta defender o posicionamento como uma obra que se encaixa na sétima arte (com o objetivo de posicioná-lo em premiações em um ano de poucas estreias) sob o argumento de que há uma narrativa, foi filmado com câmera e estruturado por meio de uma montagem, com uso de planos cinematográficos. Entretanto, a maioria das peças de teatro também é narrativa, enquanto shows também são filmados e montados com uso de diferentes enquadramentos. Dessa forma, não há um argumento consistente que posicione “Hamilton” como cinema e essa discussão só existe porque a Disney sabe que vender um filme para o catálogo do seu streaming é muito mais atrativo do que vender um musical da Broadway.
Entretanto, como já falei e repito, essa discussão está recebendo muito mais atenção do que deveria (apesar de ser sempre interessante debater o que caracteriza uma obra como filme), pois “Hamilton” é uma obra belíssima, importante, empolgante e de um imenso valor artístico, com elementos cinematográficos que combinados com a linguagem teatral engrandecem o musical. E é isso que vou abordar daqui para frente.
O cinema no teatro
“Hamilton” ser uma peça não muda o fato dessa versão se beneficiar do uso da câmera e de elementos da linguagem do cinema. No teatro, o público tem uma ampla visão de tudo (como se fosse um plano geral contínuo), sobretudo em cenas repletas de personagens, em que o nosso olhar tende a passear por todo o cenário, muitas vezes não mantendo a atenção apenas na figura central da mise-en-scène (ou até com uma incapacidade de ver os personagens tão de perto dependendo do lugar em que sentamos). É claro que o teatro tem sim seus recursos estilísticos para direcionar o olhar do espectador, como, por exemplo, com o uso da iluminação.
Porém, um musical teatral é um espetáculo feito para ser assistido ao vivo, e a ideia de transformá-lo para um conteúdo a ser consumido no streaming jamais funcionaria se realizado no modelo tradicional, ou seja, uma câmera estática captando tudo que está acontecendo. E é aí que “Hamilton” encontra uma forma de se destacar ao usar um trabalho complicado de câmera e montagem. Pois, ao mesmo tempo em que os atores apresentavam o espetáculo ao público, a câmera estava ali tentando captar os melhores ângulos possíveis, o que se torna ainda mais difícil visto o ritmo e a complexidade das sequências musicais da peça.
Entretanto, Thomas Kail consegue construir toda uma dinâmica que transforma a obra em algo único, capaz de funcionar tanto para o público que assistiu ao musical no teatro quanto para quem o consumiu pela TV. E acredito até que quem teve a oportunidade de ver ao vivo conseguiria se relacionar de forma diferente com a obra se a visitasse novamente em casa. Porque Kail é capaz de enaltecer a grandeza do teatro, usando muitos planos abertos, que ressaltam a coreografia nas sequências musicais, mas também nos aproxima dos personagens por meio de closes e do plano e contra-plano, em sequências intimistas individuais e naquelas que marcam uma relação de proximidade ou embate entre dois personagens, como as de Alexander Hamilton (Lin Manuel-Miranda, que também escreve a peça e as músicas) com Eliza Shuyler (Phillipa Soo) ou nos conflitos do protagonista com Thomas Jefferson (Daveed Diggs) e Aaron Burr (Leslie Odom Jr.).
Além disso, a montagem se faz presente e é responsável por manter um ritmo engajante do começo ao fim, alternando as grandes sequências com algumas menores e mais dramáticas, o que funciona também porque Manuel-Miranda conseguiu construir uma unidade por meio de músicas tão diferentes, do musical tradicional ao rap. E é claro, o trabalho de câmera só funciona por causa da montagem.
Personagens e história real
Todavia a obra não é apenas um espetáculo visual empolgante e de músicas e coreografias fascinantes, é também uma bela adaptação de uma importante história real com personagens complexos e bem desenvolvidos e que consegue fluir naturalmente do político ao bem humorado em questão de segundos.
A peça vai ter como protagonista o personagem-título, interpretado magnificamente por Manuel-Miranda. Vemos sua trajetória desde jovem, quando chega como imigrante em solo americano, passando pela liderança na Guerra de Independência, influência política, ruína, até sua morte. Ao mesmo tempo que a vida do personagem avança, ele ganha mais camadas, está longe de ser um herói tradicional, vai de alguém tímido a um líder e posteriormente a uma pessoa ambiciosa, enquanto luta pelo seu povo e pelo que acredita ser o melhor para os EUA, também trai sua mulher e constantemente a obsessão pelo trabalho o afasta de sua família.
E, para toda essa complexidade, o ator é capaz de transmitir os diferentes estados do personagem. Para a timidez e ambição natural, Manuel-Miranda cria uma canção falada que é ao mesmo tempo rápida, baixa e o diferencia de todos os demais personagens. Além disso, ele também se destaca em momentos menores, quando sua própria consciência passa a atormentá-lo.
Porém Hamilton está longe de ser o único personagem interessante. Burr, Jefferson, Eliza, Rei George (Jonathan Groff), George Washington (Christopher Jackson) e Angelica Schuyler (Renee Elise Goldsberry), todos têm um ou mais números musicais relevantes e que engrandecem os personagens.
Odom Jr. constrói um Burr que vive à sombra de Hamilton, um personagem que não consegue ser protagonista de sua própria vida e pela sua inabilidade de se posicionar, culpa ao seu antagonista, a quem no fundo tem um carinho, mesmo que não perceba isso. Jefferson também surge como um antagonista de Hamilton, mas, ao contrário de Burr, ele é muito mais decidido e desafiador, e Diggs demonstra toda a segurança do personagem, além de um lado cômico afiado. Soo é a personagem de melhor coração, disposta a perdoar todos os defeitos do marido, enquanto sua irmã, Angelica, é uma mulher forte, mas refém de seu tempo, aceita abrir mão de seu amor e viver uma vida medíocre para poder proporcionar o melhor para sua irmã.
E claro que não poderia deixar de falar de Groff, que tem pouco tempo e é o alívio cômico da obra. Mas que alívio cômico! É impossível não rir a cada aparição do ator, um humor que parte do sadismo de um homem mimado, ridículo e incapaz de entender a importância da liberdade para o ser humano.
Dessa forma, “Hamilton” consegue combinar muito bem linguagens completamente diferentes e criar uma experiência empolgante do primeiro ao último segundo, ainda que se aproxime muito mais do teatro, principalmente na cenografia, iluminação e atuações. É, sem dúvida, a melhor obra distribuída pela Disney nos dois últimos anos. Emociona, diverte, empolga e ensina por meio de números musicais bem coreografados e uma adaptação fantástica com personagens para lá de complexos.
Nota: 10.0
Assista ao trailer:
Ficha Técnica:
Título original: Hamilton
Data de lançamento: 03 de julho de 2020 (2h 40min)
Direção: Thomas Kail
Elenco: Lin Manuel-Miranda, Daveed Diggs, Jonathan Groff mais
Gêneros: Teatro, Musical
Nacionalidade: EUA