Em “Malcolm e Marie” acompanhamos uma noite repleta de discussões de um casal disfuncional, logo após o filme do marido, um diretor de cinema, ter tido uma boa repercussão em uma sessão teste.
O filme está disponível na Netflix.
Manipulativo e pretensioso
“Malcolm e Marie” é um mergulho estilizado na vida de um casal que vive em constante crise. Interessante é perceber que não sabemos nada sobre aqueles personagens de início, além do fato do marido ser um diretor de cinema e eles acabarem de chegar de uma sessão de seu novo filme. Assim, Sam Levinson nos convida a descobrir quem são aquelas pessoas na prática, a partir de ações e diálogos, sendo esses reveladores não só pelo que é dito, mas também pelo não dito.
Levinson então estrutura sua narrativa em um pingue-pongue infinito. Quando um não quer mais brigar, o outro desperta alguma emoção que explode outro conflito com novos temas. E depois de cada discussão, temos alguns momentos de calmaria, paixão e tentativa de reconciliação. Depois disso, é claro, mais um conflito anunciado se estabelece e conhecemos um pouco mais sobre o passado e as características daquelas pessoas. Até por isso é escolhido preto e branco, já que o filme está totalmente interessado naqueles dois, na dualidade entre eles, nas diferentes personalidades e também em um mundo sem cores.
O preto e branco serve também como estética, uma noção pretensiosa de que obras assim são superiores, mais importantes e resgatam aquele cinema do passado, como se o cinema clássico fosse a era de ouro jamais alcançada novamente. Dizendo assim, parece que Levinson trata sua fotografia com pura arrogância, mas isso ganha camadas quando toda essa noção histórica, estética e a figura do diretor se tornam temas do filme. O prepotente e inseguro Malcolm, interpretado com perfeição por John David Washington, espelha-se no cinema clássico, mais do que isso, ele quer ser o William Wyler dessa geração, rejeitando a comparação não só com cineastas negros, mas também com qualquer um que tenha aparecido a partir do cinema moderno.
Dessa forma, Levinson cria uma discussão ambígua e conflitiva sobre o assunto. Ao mesmo tempo que o personagem de Washington odeia a crítica e evidencia o que ele considera problemas como a inabilidade de um crítico entender a proposta de um diretor, seu personagem se mostra como alguém incapaz de aceitar que vejam sua obra sob uma nova ótica. Depois da estreia de um filme, ele é do público e qualquer interpretação que faça sentido é válida. Malcolm não consegue ver isso. E é aí que surge Marie, com Zendaya na melhor atuação da temporada de premiações, como uma forma de confrontar a arrogância do marido, mas, mais do que isso, evidenciar como muitas vezes o que o diretor tenta imprimir em uma obra não consegue ser comunicado ao público por culpa do próprio cineasta.
O problema é que Levinson tenta construir um cenário natural, em que essas discussões fluam normalmente e pareçam os sentimentos daqueles personagens. Só que fica claro que cada palavra proferida por Zendaya ou Washington nada mais é do que o próprio diretor dizendo ao público o que ele pensa. As discussões não fluem naturalmente, mas elas começam e se encerram por uma clara articulação forçada de Levinson. É quase como um teatro de marionete em que conseguimos ver as cordas manipulando os personagens. E, por mais que ele consiga conduzir bem a dinâmica das cenas, evidenciando aquele que se coloca em posição de superioridade, sempre o texto nos chama de volta para uma artificialidade, para uma palestra de Levinson sobre os temas tratados.
E se ele tem um texto afiado, ao abordar temas sensíveis sobre arte, artista, crítica, público e cinema, em grande parte fazendo uma autocrítica (basta ver que Levinson sempre tem uma estética chamativa, colocando-se muitas vezes acima de sua obra, o que é motivo de crítica no filme), tudo isso acaba perdendo força com a inabilidade do cineasta de criar um jogo lógico com a câmera. Ele começa sendo eficiente logo no travelling inicial (em que cria uma metalinguagem quando Malcolm diz que tal crítico disse que era um plano feito em steady cam, mas na verdade era um travelling), ao sugerir a ideia de que somos observadores daquela relação, quase como intrusos espiando a briga. Porém, isso logo se perde quando o diretor tenta criar jogos por puro malabarismo visual, por exemplo, na cena em que, sem qualquer sentido, ele monta o preparo de um macarrão com uma estilização que remete a montagem “Hip Hop”, muito utilizada no cinema de Edgar Wright e Darren Aronofsky.
Então, só nos resta observar e achar genial aquilo que Levinson quer que a gente se impressione. E a pretensão do diretor só não leva tudo por água baixo porque as duas atuações centrais dão vida e naturalidade àquilo que o texto tenta tornar didático e verborrágico. Assim, só resta ao público se interessar pelo não dito e pelo não visto, a juventude de Marie com as drogas, o filme de Malcolm, o começo daquela noite, por sorte, Levinson não usa flashbacks e deixa o público imaginar tais acontecimentos.
Nota: 6.0
Assista ao trailer:
Ficha Técnica:
Título original: Malcolm & Marie
Data de lançamento: 05 de fevereiro de 2021
Direção: Sam Levinson
Elenco: Zendaya, John David Washington
Gêneros: Drama
Nacionalidade: EUA