O que aconteceu domingo, dia 9, foi apenas a confirmação do que já vinha se anunciando. Mais uma vez o boicote a Netflix se fez presente no Oscar 2020. Como pode um filme do nível de “O Irlandês” sair zerado? Como é possível uma distribuidora com 24 indicações receber só dois prêmios?
O boicote a Netflix por uma ala da Academia não é fantasia, é algo aberto e declarado. Mas com o discurso de “preservação do cinema”, o que esses votantes fazem é dar um tiro no pé e jogar contra o cinema de qualidade e autoral. Porém antes de tudo é importante saber por que isso ocorre.
Por que o boicote a Netflix existe?
A resposta para essa questão é muito simples, a Netflix não respeita o tempo de exibição de um filme nos cinemas. Para os filmes serem indicados ao Oscar, eles devem ficar duas semanas em cartaz em Los Angeles. Entretanto, além disso, todos costumam cumprir os três meses nos cinemas antes de entrar em serviços de Streaming ou televisão, algo exigido pelas redes de cinema.
Todavia a Netflix se recusa a cumprir os três meses por não ser vantajoso para a empresa. Geralmente, ela deixa seus filmes para premiações um mês em cartaz para quem gosta de ver em tela grande e depois já coloca direto em seu catálogo. Dessa forma, ela faz com que não divida o público, entre os que assistem no cinema e os que aguardam para ver em casa. Assim, as obras não perdem relevância.
Contudo, várias redes de cinema grandes não aceitam essa proposta e não passam os filmes da distribuidora (que comprou o seu próprio cinema recentemente). E, nessa disputa, boa parte da Academia fica do lado das redes de cinema, ao argumentar que o que a Netflix faz é ruim para o cinema. Ou pior, alguns (como Steven Spielberg falou recentemente) dizem que “Netflix não é cinema”.
O primeiro problema desse discurso é que grande parte das cidades do mundo nem cinema têm, enquanto outras tem apenas uma sala, geralmente reservada ao grande filme blockbuster do momento. Então, ao invés de competir com o cinema, a Netflix serve muito mais como uma forma de trazer cinema de qualidade para pessoas que não teriam oportunidade de assisti-lo. Mas essa discussão acaba fugindo um pouco do ponto central que quero abordá-lo: o cinema de diretor.
Liberdade criativa para os diretores
A gente vive um período do cinema dominado por franquias e grandes blockbusters de estúdios, que na maioria das vezes pouco importa quem é o diretor. Essa é uma crítica minha e de muitos outros ao Universo Marvel que, apesar de ter ótimos filmes, nunca se arrisca e nem dá liberdade para os seus diretores criarem, ainda que muitos ali presentes sejam talentosos, por exemplo Taika Waititi e James Gunn.
Então, com medo de perder dinheiro, as distribuidoras raramente dão liberdade para os diretores colocarem sua visões criativas nos filmes. Isso ocorre com no máximo um ou dois filmes por estúdio na época do Oscar, já que uma indicação ao prêmio rende vantagens para as distribuidoras que vão além da bilheteria (por exemplo venda de blu rays e para o streaming).
De todas as grandes distribuidoras, sem dúvida a que mais vem dando espaço para os filmes autorais é a Netflix. Apostando em diretores consagrados como Martin Scorsese (“O Irlandês”) e Alfonso Cuarón (“Roma”), para cineastas que começaram no cinema independente, como Noah Baumbach (“História de um Casamento” e “Os Meyerowitz”) e Cary Fukunaga (“Beasts of No Nation”) ou até para diretores internacionais como Fernando Meirelles (“Dois Papas”) e Bong Joon-Ho (“Okja”).
E isso vem rendendo bons frutos para o Streaming, que teve o melhor filme de 2018, com “Roma”, e tem o melhor catálogo de 2019. Talvez a única capaz de rivalizar em qualidade e liberdade para os cineastas é a A24, mas esta não tem dinheiro para campanha e acabou conquistando apenas uma indicação ao Oscar, apesar de filmes como “O Farol”, “Midsommar”, “The Farewell” e “Uncut Gems”.
Hipocrisia no discurso
Então, quando a Academia boicota abertamente uma das únicas distribuidoras que dá liberdade para os diretores e nem indica os filmes da outra que faz o mesmo, ela acaba caindo em contradição. Se o foco é a preservação de um cinema de qualidade, por que boicotar alguém que está fazendo um bom cinema? Se pretende defender diretores e profissionais da indústria porque ir contra distribuidoras que dão liberdade a esses?
Dessa forma, a resistência à mudança da Academia acaba sendo prejudicial ao cinema. Isso já ocorreu com o cinema falado, o cinema colorido, com diversos gêneros (com o terror persiste), com filmes internacionais (que foi quebrado este ano com “Parasita”) e agora com o streaming.
Mas se a Netflix cansar do boicote e decidir apostar apenas nos filmes mais populares de seu catálogo, que lhe rendem frutos melhores, quem sai perdendo é o cinema e os diretores. Agora é torcer para a Academia mais uma vez se abrir para o novo e tomará que isso não demore muito tempo.
Veja o vídeo de análise que eu fiz para o meu canal, o 16mm, sobre o boicote a Netflix por parte da Netflix: