O veterano de guerra Frank “O Irlandês” Sheeran é um motorista de caminhão que acaba se envolvendo com a máfia. Ele é designado a ser o braço direito do famoso sindicalista norte-americano Jimmy Hoffa.
Mais do que um filme de máfia
A frequente comparação entre “O Irlandês” e “Os Bons Companheiros” ou “Cassino” é inevitável, porém bastante imprecisa. É bem verdade que todos são filmes de máfia, com Robert De Niro e Joe Pesci no elenco, dirigidos por Martin Scorsese e focados em personagens acima de tudo. Os movimentos de câmera e fotografia são parecidos, o utilização da narração em off do protagonista, uso perfeito de silêncios, além de muitos outros recursos que Scorsese ama.
Mas restringir “O Irlandês” a “mais um bom filme de máfia” ou a “não é tão bom quanto Os Bons Companheiros” é não saber apreciar a complexidade da nova obra do melhor diretor vivo. O longa é muito mais do que um filme de máfia e serve, de certa forma, até como uma sequência de “Os Bons Companheiros”.
O filme é sobre o envelhecimento, passado, legado perdido e acima de tudo, sobre o ser humano. E a história é contada de forma tão lúcida por Scorsese que ele é capaz de nos colocar na pele de seu protagonista e nos fazer sentir empatia por alguém que sabemos que fez muita coisa detestável.
É uma aula de como construir arcos de personagens e desenvolvê-los com uma sensibilidade digna de um mestre. É um filme em sintonia, em que tudo se conversa a todo instante. Começando pelo trio principal formado pelos já citados De Niro, Pesci e Al Pacino, em sua primeira colaboração com o diretor.
Atuações e personagens
De Niro é o olho do público e por meio dele conhecemos essa jornada pelo submundo do crime. Ele constrói um personagem passivo, que está quase sempre seguindo ordens e, por causa disso, temos a impressão do que os problemas da trama são sempre externos ao personagem. É quase como se tudo simplesmente acontecesse em sua vida. Ele entra na máfia por coincidência, conhece Hoffa porque foi designado a isso e por aí vai (falar mais do que isso seria dar spoiler).
Porém, por sermos transportados para dentro da trama, conseguimos sentir os conflitos internos do personagem. Suas diversas tentativas frustradas de se conectar com a filha (Anna Paquin), sua inabilidade de conseguir convencer Hoffa e, principalmente, a dificuldade de viver sozinho no final de sua vida.
Os últimos 30 minutos do longa trazem um De Niro triste, carregado de emoções e é capaz de fazer muita gente chorar, independente dos crimes que o personagem cometeu durante o resto da obra. Já que a velhice e a solidão não são sentimentos exclusivos desse personagem, mas sim sentimentos universais.
E é nesse sentido que o filme serve como um complemento para “Os Bons Companheiros”. Além de terem focos e estruturas diferentes, os arcos de seus protagonistas são distintos desde a primeira frase de cada longa.
Mas é claro que eu não poderia deixar de falar de Pacino e Pesci. Enquanto o segundo transporta uma serenidade incrível que nos aproxima de um chefe da máfia, o primeiro rouba a cena com um personagem expansivo, orgulhoso e cheio de questionamentos. É sem dúvida as melhores atuações do trio neste século.
Scorsese em seu auge
Mas a ideia da velhice como tema central não conversa apenas com os atores. É quase como se fosse Scorsese olhando para trás e vendo tudo que ele já fez ao lado de seus amigos. E isso explica o caráter épico do longa. Entretanto, apesar das três horas e meia, não há nada sobrando. É um quebra cabeça com todas as peças no lugar. E não teria pessoa melhor para fazer isso do que a incrível Thelma Schoonmaker, mais uma parceira de longa data do diretor.
A dupla consegue achar um ritmo para o longa, mais lento em alguns momentos, como o último ato, mais dinâmico quando os personagens se encontram no auge. Sempre intercalando momentos mais dramáticos com outros até mais cômicos, sempre com uma certa dose de violência.
E a partir do momento que a trama avança por diferentes momentos do tempo, a fotografia e o design de produção a acompanham, com pequenas diferenças entre os acontecimentos em cada uma das décadas. Destaque para a cena em que Frank vai receber um prêmio. Ao mesmo tempo que o espaço traz esse lado mais festivo, ele explora as diferentes tensões presentes ali, marcada pelos abajures vermelhos e a iluminação ameaçadora.
Destaque também para a fabulosa trilha sonora, que não tem medo de se fazer presente quando necessário e marcar o público com notas que nos remetem à Nino Rota, no clássico “O Poderoso Chefão”. Porém, a música, sem arrogância, sabe dar lugar ao silêncio e ao som ambiente quando a construção dramática pede. Isso fica claro em uma cena que determinada personagem entra no carro e tarda ao máximo para ligar o veículo. Até o barulho da chave se torna desesperador.
Marcante e único
Em um dos melhores anos do cinema, “O Irlandês” consegue figurar entre uma das obras mais marcantes. Mas não podia ser diferente, já que se trata de uma reunião épica entre pessoas que já cravaram o seu nome na história da sétima arte há muito tempo. É uma pena que o filme tenha ficado tão pouco tempo nos cinemas, onde ele pôde ser apreciado da melhor forma possível.
Nota: 10.0
Crítica em vídeo:
Assista abaixo à crítica em vídeo que eu fiz sobre o primeiro longa em meu canal, o 16mm.
Assista ao trailer:
Ficha Técnica:
Título original: The Irishman (O Irlandês)
Data de lançamento: 27 de novembro de 2019 (3h 25min)
Direção: Martin Scorsese
Elenco: Robert De Niro, Al Pacino, Joe Pesci, mais
Gêneros: Drama, Comédia
Nacionalidade: EUA