“Destacamento Blood” conta a história de um grupo de ex-militares que lutaram na Guerra do Vietnã e, anos depois, voltam ao local em busca de um tesouro escondido.
De volta à boa forma
A Guerra do Vietnã foi uma das que mais recebeu destaque no cinema hollywoodiano, quase sempre com obras críticas à presença caótica norte-americana. Entretanto, pouco se fala sobre os negros que ali combateram, em um período de forte tensão racial em diversas cidades dos Estados Unidos. Ou seja, enquanto lutavam por direitos em seu país, muitos deles eram enviados para uma guerra a qual não pertenciam.
Então, por ironia do destino, “Destacamento Blood” estreia justamente em um momento de manifestações e fortes conflitos contra o racismo, o que começou com o assassinato de George Floyd por um policial branco e se espalhou pelo mundo todo.
Após quase uma década longe dos holofotes (era lembrado principalmente pelo desastroso remake de “Oldboy”), Spike Lee voltou a ganhar destaque há dois anos com o ótimo “Infiltrado na Klan”, o que marcou o seu retorno ao cinema político e ativista. Em “Destacamento Blood”, o cineasta mostra que ainda é um dos melhores diretores em atividade.
Político e urgente
O que presenciamos aqui é quase uma releitura dos filmes sobre o Vietnã. Não que Spike Lee tente romper com as obras anteriores, pelo contrário, fica clara a homenagem principalmente a Apocalypse Now, tanto em sua premissa quanto em referências bem evidentes como o uso da “Cavalgada das Valquírias”, de Richard Wagner, presente na cena mais emblemática do longa de Francis Ford Coppola.
Entretanto, mais uma vez Spike Lee faz uma revisita sob um outro ponto de vista. A simples mudança de protagonistas brancos por negros já traz um impacto imediato. E, por incrível que pareça, o foco do filme é também o que há de mais sutil em todo o longa, já que o diretor não tem medo de expor o seu ponto de vista das mais variadas formas possíveis. E, se normalmente reclamo da falta de sutileza em obras que tentam abordar um viés político muito claramente, mas soam apenas como panfletárias, aqui acontece o exato oposto.
De certa forma, “Destacamento Blood” pode ser visto como uma obra transgressora temática e narrativamente (e aqui falo em narrativa no sentido mais amplo da palavra: tudo aquilo que vemos em tela). Isso porque o cineasta combina uma série de recursos pouco usuais, mas que compõem uma linguagem única ao filme. E ele está pouco interessado nas convenções do cinema (que muitas vezes são erroneamente tratadas como regras) e na “obrigação” de mostrar todos os lados.
Sem medo de quebrar as “regras”
Nesse sentido, alguns elementos de “Infiltrado na Klan”, como pôsteres de filmes, cabeças flutuantes ou as cenas do massacre de Charlottesville, serviram de experimento para o diretor, que demonstra uma liberdade muito maior ao explorar diferentes elementos narrativos e estilísticos em “Destacamento Blood”.
Logo de início, Spike Lee já se mostra completamente desgarrado das amarras das convenções cinematográficas. Já na primeira cena, ele cria uma repetição no simples abraço entre os personagens (algo bem comum em toda sua filmografia). Em seguida, enquanto os protagonistas conversam em uma mesa do bar “Apocalypse Now” (referência autoexplicativa), o diretor faz a câmera quebrar o próprio eixo mais de uma dezena de vezes, criando assim uma mistura de desconforto e caos controlado.
Mas nada disso é aleatório, já que o filme tem como tema uma ideia de libertação pessoal (como diretor) e dos negros. E, para isso, ele se sustenta em uma história de irmandade dentro do caos. Então, até uma frequência dois para um ao se abraçarem ganha um significado muito mais amplo do que aquele ato banal. É a força da união entre os protagonistas, os laços que não podem ser quebrados.
O mesmo vai acontecer nas mudanças bruscas de proporção de tela ou uso frequente de imagens documentais. No primeiro, a transição para uma tela mais quadrada em flashbacks não só remete a um cinema mais antigo, mas também cria uma verticalidade maior no plano, o que serve para ressaltar e quase endeusar aquele (Chadwick Boseman) que não sobreviveu à guerra, “o melhor entre eles”. Curioso também é a escolha de manter os personagens velhos em cenas do passado, algo incomum, mas bastante plausível vista a forma como lembramos dos acontecimentos, quase sempre transportando o nosso eu atual à uma situação anterior.
Enquanto isso, o uso de imagens reais adiciona um sentido ainda mais amplo do que o de “Infiltrado na Klan”. Se lá a ideia era mostrar que o problema não tinha ficado no passado, mas permanecia até hoje, aqui ele acrescenta a memória (outro tema muito presente no longa) daqueles que morreram lutando por liberdade ou em uma guerra absurda.
Porém, esses recursos vão sendo menos usados a partir do momento em que os personagens adentram a selva do Vietnã mais uma vez e voltam a ser perturbados por suas vivências naquele local. Sobretudo o protagonista de Delroy Lindo, que tem uma atuação brilhante, unindo a complexidade do personagem ao poder dos traumas provocados nele. É como se o diretor esquecesse do real ao lado de seus protagonistas e entrasse junto a eles no caos que está por vir.
É verdade que o filme acaba perdendo um pouco da energia ao apresentar uma certa barriga em seu segundo ato, mas isso é recompensado pela imprevisibilidade constante do roteiro que resulta em um clímax fascinante e visceral, sem nunca deixar de lado os conflitos psicológicos dos personagens. Destaque para os longos e poderosos monólogos de Lindo, personagem traumatizado e repleto de ódio, não à toa é o único negro do filme a ter votado no Trump, o que gera ótimas cenas com o humor provocativo que o cineasta faz tão bem.
Crítico, engraçado, dramaticamente carregado e provocativo, “Destacamento Blood” é a libertação total de Spike Lee às convenções cinematográficas, ao retratar problemas históricos que insistem em permanecer em nossa sociedade até os dias de hoje.
Nota: 8.5
Assista ao trailer:
Ficha Técnica:
Título original: Da 5 Bloods (Destacamento Blood)
Data de lançamento: 12 de junho de 2020 (2h 35min)
Direção: Spike Lee
Elenco: Delroy Lindo, Chadwick Boseman, Jean Reno mais
Gêneros: Guerra, Drama
Nacionalidade: EUA