“The Last of Us Part II” segue os eventos do primeiro jogo e acompanha Ellie e Joel estabelecidos na cidade de Jackson ao lado de vários sobreviventes. Em uma patrulha, Joel e seu irmão, Tommy, são capturados e o primeiro é morto após ser torturado. Então, Ellie parte em busca de vingança.

Um marco na história dos games

Sete anos após o excelente “The Last of Us” ser lançado para Playstation 3, “The Last of Us Part II” chegou como o jogo mais esperado do ano e causou muita repercussão. Recorde de vendas, aclamado pela crítica e muito odiado por boa parte dos gamers. Para o bem ou para o mal, a Naughty Dog conseguiu fazer o barulho que desejava. E tenho a clara impressão de que a desenvolvedora do jogo está pouco se importando para as críticas dos gamers, até porque elas já eram recorrentes desde o lançamento do trailer e da tentativa do boicote pré-lançamento, com direito a vazamentos de spoilers do jogo.

Mas nada disso adiantou e a sequência foi capaz de superar o seu antecessor (que já era, para mim, um dos melhores já feitos). “The Last of Us Part II” é um marco na história dos games, é um daqueles casos que, desde os primeiros instantes de gameplay, você sabe que está fazendo parte de algo único. E digo “fazendo parte” porque o jogo tem uma narrativa capaz de imergir completamente o jogador.

Normalmente, minhas críticas têm entre 8 e 15 parágrafos (de 500 a 1200 palavras), mas hoje vou precisar mudar um pouco isso, pois “The Last of Us Part II” não pode ser resumido em poucas palavras, é o tipo de obra que se eu pudesse passaria horas falando sobre. Entretanto, esse texto será muito mais focado na parte narrativa, no gráfico e nas demais questões técnicas, já que, apesar de eu gostar muito de video games, a minha área é o cinema. E a discussão de se um jogo pode ou não ser considerado arte já está para lá de ultrapassada. Esse jogo (como já acontecia com o primeiro) tem tudo que se espera de qualquer obra audiovisual, com o acréscimo da participação ativa do espectador.

Dessa forma, começarei brevemente pelo gameplay, o que eu posso falar com menos propriedade técnica e, por isso, focarei mais na minha experiência como fã da franquia. E, nesse sentido, o jogo faz aquilo que é comum em todas as franquias, trazer de volta a jogabilidade do primeiro, mas acrescentar alguns elementos: novas armas, espécies de zumbis, movimentos, cenários, mundo mais aberto etc.

Além disso, o jogo acerta bastante ao adaptar cada elemento para a personagem que protagoniza aquela sequência e o recursos mais escassos são importantes para trazer mais credibilidade para aquele universo pós-apocalíptico e tornar o modo furtivo ainda mais imprescindível. Além disso, o equilíbrio entre terror (zumbi), ação (humanos) e terror com ação (zumbis e humanos) é perfeito, com uma evolução gradativa na dificuldade de cada sequência.

the last of us 2

Ambientação e detalhes técnicos

Mas o segundo “The Last Of Us” realmente se destaca pela narrativa e por toda a parte técnica. Começarei pelo segundo, que vai além apenas de um gráfico incomparável e passa pelos figurinos, mise en scène e todo o trabalho sonoro, sem dúvida o melhor design de som que já tive a oportunidade de ver e ouvir em um game.

Não é apenas a trilha sonora que ressalta o terror, ao trazer a tensão necessária em sequências genuinamente aterrorizantes. O que mais me chama atenção é o uso dos silêncios, as frases não ditas, que são muitas vezes mais poderosas do que qualquer diálogo. É justamente assim que se constrói a relação entre Joel e Ellie nessa sequência. Sentimento, mágoa e amor, tudo está vivo em cada cena entre eles, mas ambos são incapazes de demonstrar o que sentem um pelo outro com palavras ou carinho. São personagens que foram privados do amor, não de senti-lo, mas de colocá-lo para fora, como vemos tanto na última cena entre eles quanto na espetacular sequência do museu.

Ainda assim, tudo está ali graças ao gráfico magistral. Os personagens são expressivos como jamais havia visto. São expressões de pessoas reais, cada músculo que mexe, cada olhar repleto de significado e até as veias aparentes. Video game é uma arte audiovisual, então para que dizer quando é possível mostrar em silêncio? E é esse silêncio incômodo e ensurdecedor que nos comove e nos machuca, assim como causa dano semelhante naqueles personagens. A falta de um abraço apertado ou um simples “eu te amo” corrói a nossa alma.

Mas também a música apresenta sua função. O violão da Ellie não é um mero objeto de cena e as músicas que dele saem muito menos. Ele é a lembrança que ela tem do Joel. Ela é a recordação de uma época em que conseguia ter sentimentos bons e não apenas o ódio. Assim, de forma inteligente e sutil, o jogo constrói uma rima poderosa. Começa com Joel ensinando Ellie a tocar (uma música que vai dizer muito sobre a trajetória dela, por sinal) e finaliza com a Ellie incapaz de manejar o instrumento. Sem isso, ela não é ninguém, é incapaz de lembrar ou de amar. O ódio destruiu tudo em sua vida, tirou seu amor, sua figura paterna e todo o resto de humanidade que tinha a sua volta.

Narrativa ousada e Personagens

“The Last of Us Part II” é acima de tudo sobre personagens. Pessoas obrigadas a viver em um mundo inabitável e se transformar para sobreviver. Já era assim no primeiro jogo, quando Joel tem de escolher entre uma possível cura para a humanidade e a pessoa que ama, o que o leva a cometer uma chacina. É justamente esse evento que move o segundo jogo: o ódio e a vingança. Não apenas por parte da Ellie, como disse acima, mas também pelaa Abby, que deseja e consegue a vingança pela morte de seu pai.

Porém, é um caminho sem volta. Ódio só leva a mais ódio, a vingança destrói tudo aquilo que o cerca. Dessa forma, as duas personagens entram em uma jornada de autodestruição (que destrói e mata também aqueles que as cercam). Na tentativa de curar sua dor, tanto Ellie quanto Abby só se machucam mais. Vão perdendo aquilo que as tornam humanas. Mas o pior de tudo é que entendemos as duas, no lugar delas, faríamos o mesmo. Nenhuma das duas está certa, nenhuma duas está errada. Mas ao mesmo tempo, sem saber, as duas estão erradas e nós erraríamos igual se ali estivéssemos.

Então, o que temos é uma trama de vingança, o fato de acontecer em um universo zumbi é um mero acaso. Mas ao mesmo tempo não é, já que essas personagens jamais seriam levadas a esse extremo se não fossem obrigadas a passar pelo que passaram. Foram crianças que nasceram no caos e desde cedo viveram no ódio. A relação com o nosso mundo atual não é um mero acaso, a metáfora de que viver em um mundo repleto de ódio só nos destrói é sutil, mas ao mesmo tempo é clara.

the last of us part II b

Evidente também é a mensagem de que precisamos voltar a ter empatia uns pelos outros, aprender a perdoar, conviver e amar. E é aí que surge a escolha narrativa mais brilhante e inovadora. Após vermos a Abby como uma vilã, ao torturar e matar o nosso personagem mais querido, o game nos obriga a jogar com ela. A controlar quem odiamos. Só assim poderemos aprender a perdoar e sentir empatia. A gente poderia conhecer toda a motivação da personagem desde o início, o que faria com que a compreendêssemos no momento em que mata o Joel. Seria isso que qualquer roteirista faria, mas não nesse jogo. Retroceder após esse fato e mostrar o outro lado é ainda mais poderoso. Não só aprendemos a compreender a Abby, somos capazes de gostar da personagem. Ela é apenas mais uma vítima daquele mundo, alguém que perdeu tudo e usou o ódio como armadura. Alguém que tenta esconder o amor, a bondade e a empatia a qualquer custo. Em Abby tem muito de Ellie e vice-versa.

Só que não é só Ellie e Abby que são confrontadas diariamente pelo ódio, todo aquele universo passa pelo mesmo. É um mundo corrompido que não consegue ver o inimigo em comum e trava batalhas entre si rumo à extinção. É desse ódio que surgem os Lobos, os Serafitas e todas demais milícias armadas da região. Como a Ellie e a Abby, todos ali apresentam motivações justificáveis, por mais malucas que algumas delas possam parecer. Alguns se apegam a religião, outros a uma união armada e por aí vai.

Só que quando tudo parece destruído e sem vida, alguns personagens demonstram que ainda existe amor nesse mundo. É assim que Dina e Lev surgem na narrativa, eles ressaltam a empatia que ainda existe tanto na Ellie quanto na Abby. E, se a Dina fica um pouco restrita a side kick e par amoroso, o mesmo não pode ser dito do Lev. A narrativa não tem pressa alguma para contar a sua história. Presenciamos sua relação com a Abby como um rompimento ao ciclo do ódio e vemos dali nascer uma amizade bonita e improvável. Só aí, quando ansiamos desesperadamente por respostas, descobrimos por que o personagem fugiu dos Serafitas. Ele apenas queria ser ele mesmo e poder ter o controle de sua própria vida. Queria poder amar e ser amado.

E todas essas escolhas resultam no clímax mais dramaticamente carregado que já joguei. A cena da praia, a luta na beira do mar e a escolha de Ellie. Assim como o termo “A Escolha de Sofia” se popularizou no cinema, o mesmo deveria acontecer com “A Escolha de Ellie” em todo o contexto audiovisual. É impactante, comovente e poderosa. Mais uma vez o silêncio se faz presente quando as duas estão no limite e a decisão de deixar tudo para lá é também saber que os ferimentos nunca vão cicatrizar (eles não cicatrizariam de qualquer forma). É uma perfeição técnica e narrativa (não lembro se alguma vez já tinha usado a palavra perfeição em uma crítica). É a finalização impecável para uma jornada inigualável.

Diversidade

Eis que chegamos ao ponto que causou maior revolta em parte dos fãs gamers: uma narrativa inclusiva. Desde a exibição do trailer que revelava a sexualidade da Ellie, vimos uma tentativa desesperada de boa parte do mundo gamer de boicotar o jogo. E a palavra mais repetida era “lacração”. Sim, porque, hoje em dia, dar espaço para diversas possibilidades de personagens e protagonistas é visto como algo negativo. Sabendo disso, a história tem em seus primeiros minutos a sua crítica menos sutil. Ellie rejeita os sanduíches de um personagem homofóbico, o que normalmente me soaria como uma crítica exageradamente explícita, mas que aqui funciona simplesmente como a Naughty Dog dizendo “a gente não precisa do seu dinheiro” para aqueles que insistem em ter o ódio como sua principal arma. É uma resposta poderosa para as tentativas frustradas de boicote.

Entretanto, não é apenas com uma protagonista lésbica que o jogo trabalha a diversidade. Abby, Lev e Dina também surgem para mostrar as diferentes personalidades, fisicalidades e sexualidades, fugindo do clichê da mulher forte masculinizada e lésbica por exemplo. Pois, no fim, “The Last of Us Part II” não quer lacrar ou subtrair, o objetivo do jogo é o extremo oposto, é uma rebeldia contra o ciclo do ódio, é clamor pela empatia humana, é a luta por agregar e mostrar novas possibilidades. Quem se sentiu ofendido com o game por causa dessas questões pode apenas ainda não estar pronto para essa obra-prima.

Nota: 10.0

Assista ao trailer:

Ficha Técnica:

Título original: The Last of Us Part II
Data de lançamento: 19 de junho de 2020
Direção: Neil Druckmann
Gêneros: Terror, Drama, Aventura
Nacionalidade: EUA