“Dark” conta a história de um loop temporal na cidade de Winden, na Alemanha, na qual pessoas vivem interligadas por um nó temporal infinito.

Um novo mundo audiovisual

Recentemente, ao receber uma de suas quatro estatuetas do Oscar pelo filme “Parasita”, Bong Joon-Ho fez um discurso falando da importância dos norte-americanos olharem para outros cinemas que não apenas Hollywood e que se assim fizessem conheceriam um mundo novo. Porém, não é apenas os Estados Unidos que consomem pouquíssimo conteúdo audiovisual externo, boa parte do mundo tende a se restringir a filmes e séries locais e mais os americanos, que são quase uma unanimidade mundial por ser o país com mais dinheiro para fazer essas obras.

Entretanto, no Brasil a situação é ainda pior, pois grande parte do público rejeita o seu próprio cinema, o que vem de uma mistura de preconceito, desconhecimento dos filmes nacionais e falta de divulgação. Então, falar de produções brasileiras, europeias, asiáticas, entre outras, aqui é quase um palavrão. Somos um dos países mais restritamente consumidor de obras hollywoodianas, mas isso pode começar a mudar aos poucos.

Se “Parasita” abriu os olhos de muita gente pelo mundo para o cinema “estrangeiro”, a Netflix tem sido muito bem sucedida ao trazer diversas obras de várias nacionalidades para o Brasil (e para outros países). E, nesse ponto, “Dark” pode ter uma importância muito grande para essa perda de preconceito gradual. Eu jamais imaginaria há 5 anos que uma série alemã de ficção científica seria febre por aqui. Felizmente, a produção não só se tornou popular como conseguiu fechar na hora certa sem perder qualidade.

dark review

Uma unidade impecável

“Dark” foi capaz de fazer algo que a maioria das séries não conseguem: terminar no momento certo. Desde o começo, mesmo antes de saber que faria sucesso mundialmente, os showrunners Baran bo Odar e Jantje Friese tinham uma ideia clara de que história iriam contar e quanto tempo levariam para desenvolvê-la. Por isso, mesmo que estendê-la fosse uma opção financeiramente vantajosa, eles sabiam que poderia afetar a qualidade do material e prezaram pelo lado artístico, algo louvável, principalmente nos dias de hoje.

Entretanto, o planejamento da dupla e dos demais roteiristas fica mais claro quando percebemos que apesar dos temas extremamente difíceis de se trabalhar, como viagem no tempo e paradoxo de bootstrap, os furos de roteiro são inexistentes. Eles sabiam exatamente qual seria o ponto de partida e como eles iriam encerrar aquela história, tendo um cuidado mais do que especial para fechar todos os arcos abertos, tanto os arcos dos personagens quanto os visuais, sonoros, de conceitos, entre outros.

Apesar de muitas vezes darmos mais atenção para a história e para os conceitos daquele universo, “Dark” mostra que o resultado é muito mais agradável quando se consegue uma unidade em toda a obra. Ou seja, as três temporadas estão em sintonia na forma como trabalham todas as questões visuais (fotografia, design de produção, figurino), sonoras (trilha e efeitos sonoros) e narrativas. Então em nenhum momento pensamos “tal elemento não combina com esse universo”.

Isso fica evidente até em questões bastante simples, como a chuva constante para representar o estado emocional dos personagens ou uma montagem mostrando estes em câmera lenta e com uma música alemã sempre antes do clímax do episódio, o que funciona como um respiro para aquilo que está por vir.

Personagens e montagem

Entretanto, de nada adiantaria todo um cuidado estético e narrativo se não houvessem bons personagens. Nenhuma série consegue fazer sucesso por mais de uma temporada se somos obrigados a ver vários episódios sem sentir empatia por quem está em tela. Mas “Dark” acerta em cheio nesse aspecto também, eu diria até que a série é mais sobre os personagens do que sobre a ficção científica em si.

Tudo acontece por causa dessas pessoas e ao tentar resolver o que criaram acabam por complicar ainda mais a situação. E isso reflete a construção dramática dos personagens. Conhecemos todos em um estado de harmonia no começo da primeira temporada e, a partir do momento em que eventos começam a abalar essa tranquilidade, esses personagens são obrigados a tomar decisões atrás de decisões e aos poucos revelam mais sobre suas personalidades. Mas, como estão presos em um mundo pelo qual não têm controle, viram reféns das ações deles mesmos. Não há vilão, não há herói, são pessoas tentando salvar aquele mundo particular da forma como acreditam ser o correto, mas que só servem para construir um efeito bola de neve ainda maior.

E vale um destaque adicional para como a montagem constrói essa narrativa e consegue dar atenção para todos os muitos personagens presentes em tela. Então sentimos algo até pelos que inicialmente parecem menos importante, já que até esses são peças fundamentais nesse quebra-cabeça infinito. Além disso, a escolha perfeita de elenco, que traz bons atores e semelhantes fisicamente para interpretar os mesmos personagens em diferentes momentos da vida, é fundamental para conseguirmos saber quem é quem.

Dark 3

SPOILERS ABAIXO!

Todavia, a terceira temporada não é apenas uma temporada de fechamento, ela consegue até superar a ousadia das duas primeiras, o que pode explicar alguns de seus deslizes. Ao invés de ir se fechando, a história vai se expandindo, se antes tínhamos um mundo, agora temos dois, e o ciclo infinito passa a se abrir e criar um nó entre mundos, um bootstrap que deixa de ter apenas o futuro influenciando no passado, mas agora tem uma realidade interferindo na outra. E, ainda que o mundo dois não seja tão desenvolvido quanto o primeiro, até porque a não existência de Jonas e Michael diminuem o número de acontecimentos, ele consegue ser interessante o suficiente para equilibrar esses dois lados.

Ainda assim, o primeiro episódio que apresenta essa segunda realidade é o mais problemático de toda série. Apesar de individualmente ser muito bom, ele quebra um pouco da unidade que elogiei tanto nesse texto. É bem verdade que a exposição é muito bem feita, mostrando a diferença entre os mundos visualmente e sem recorrer para o diálogo. Porém, ao se manter muito preso apenas a uma linha narrativa, ele não conversa com o restante da temporada, que aposta numa divisão muito equilibrada entre os personagens, sempre com a montagem saltando constantemente no espaço-tempo.

Seria mais interessante apresentar esse mundo sob apenas uma ótica. Assim, conheceríamos gradualmente aquilo que Jonas presenciasse. E é bem verdade que a transição entre mundos é feita com um elemento bem brega e que prejudica por alguns segundos a imersão do espectador (para que o efeito sonoro?).

Clímax de Dark

Contudo, o maior problema da série acontece justamente em seu clímax. A ousadia da narrativa causou uma dificuldade para fechar toda a história e, ainda que está seja concluída satisfatoriamente, o roteiro teve que apelar para alguns recursos mais pobres. O primeiro é a inexplicável quebra do loop por meio de uma percepção absurda da Cláudia, o que soa até como um deus ex machina.

Porém, a maior fragilidade mesmo acontece na cena equivalente ao clímax de “Dark”. O clímax nada mais é do que o principal momento de uma obra e deveria ser o auge da dramaticidade. Só que a série privilegia a criação dos mundos alternativos, o que do ponto de vista de história faz sentido, mas é dramaticamente fraco. Isso porque ao invés de focar em Martha e Jonas, personagens centrais da série e que estamos investidos desde o começo, ela opta por dar espaço para o filho do H. G. Tannhaus. O problema é que esse é um personagem desconhecido e nada sentimos por ele, já que o conhecemos há cinco minutos.

Apesar disso, a série é a melhor série original Netflix que eu vi (entre as que já terminaram, é claro). E mesmo tendo a segunda como temporada mais sólida, os problemas das demais pouco interferem na qualidade do todo. Espero que essa obra seja capaz de quebrar um pouco mais do preconceito que os brasileiros têm com produções não hollywodianas.

Nota: 9.0

Crítica em vídeo:

Assista abaixo à crítica em vídeo que eu fiz sobre a série em meu canal, o 16mm.

Assista ao trailer:

Ficha Técnica:

Título original: Dark
Data de lançamento: 27 de junho de 2020 (8 episódios)
Showrunner: Baran bo Odar e Jantje Friese
Elenco: Louis Hofmann, Lisa Vicari, Oliver Masucci mais
Gêneros: Ficção científica, Thriller
Nacionalidade: Alemanha