“Expresso do Amanhã” conta a história de uma sociedade pós-apocalíptica obrigada a viver em um trem que não pode parar nunca, já que tudo fora dele está em uma temperatura tão baixa que nenhum ser humano consegue sobreviver.

Ainda não se justificou

Pode parecer prematuro analisar uma série apenas por sua primeira temporada. Na maioria das vezes, os episódios iniciais servem como uma forma de avaliar a repercussão do público para, a partir do segundo ano, ter uma ideia mais sólida do que criar a partir de então. Entretanto, são justamente esses primeiros episódios os responsáveis por construir o universo e apresentar os personagens centrais, além de fazer escolhas como o tom que a obra vai seguir. Infelizmente, a primeira temporada de “Expresso do Amanhã” é bastante falha, e, pior do que isso, apresenta escolhas que vão ser difíceis de ser consertadas.

A obra é incapaz de cumprir as expectativas que ela mesmo cria. Primeiro, desvincular-se do ótimo longa de mesmo nome e que ajudou a vender a série, é só ver como o nome de Bong Joon-Ho (diretor do filme e apenas um dos produtores da série) foi usado, muito graças ao sucesso no último Oscar, soa inicialmente como uma ideia interessante, porém a série sente uma dificuldade gritante em construir a própria narrativa.

Os conceitos gerais são semelhantes ao longa e à HQ que originou ambos, mas a escolha da história a ser contada dentro desse universo se torna um grande problema. O tom inconsistente não sabe se a obra quer ser uma série cinematográfica, como o valor de produção sugere, ou uma novela, e a narrativa acaba apelando para os dois extremos. Um bom exemplo são eventos finais da primeira temporada, que são inconcebíveis até na novela mexicana mais brega, com direito ao surgimento repentino da filha até então falecida. Entretanto, no mesmo episódio, a direção foi capaz de criar cenas com uma linguagem próxima ao cinema, principalmente na sequência em que Melanie (Jennifer Connoly) lembra da filha e das atitudes que tomou e a direção usa o laranja e o azul para mostrar a personagem com e sem a filha, ao mesmo tempo que usa enquadramentos que escondem parte do rosto da personagem, sugerindo que ela não está completa.

Dessa forma, a impressão que fica é que são muitas mentes por trás do projeto e que essas não se conversam. E isso vai aparecer de forma ainda mais evidente no roteiro.

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Roteiro e personagens

Fazia tempo que eu não assistia a uma série com tantos furos gritantes de roteiro, o que reforça ainda mais essa sensação de que tudo foi feito por diversas cabeças que não se falavam. O que explicaria também a grande quantidade de soluções que surgem do nada em momentos cruciais. Chega a ser vergonhoso como a série faz uma clara exposição sobre um assunto para no episódio seguinte, ou às vezes no mesmo capítulo, fazer o extremo oposto sem nenhuma explicação justificável. O melhor exemplo disso é a recuperação dos engavetados, que é tratada inicialmente como um processo lento, que leva dias ou até semanas. Todavia, quando convém ao roteiro, personagens podem se recuperar em questão de minutos e sair lutando em seguida.

Além disso, vemos um gás surgindo em uma situação determinante sem nunca ter sido citado anteriormente, um trem que jamais tinha sido visto por sete anos aparecer repentinamente, um personagem quase desconhecido trair os demais quando a revolução estava encaminhada e virar o jogo, e por aí vai. É um roteiro que não tem vergonha nenhuma em passar a perna no público constantemente. Para gostar da narrativa é preciso sentir prazer ou não ligar em ser manipulado, além de fechar os olhos para toda a falta de lógica que faz a história avançar.

Mas tudo isso poderia ser perdoado se houvessem personagens cativantes ou bem desenvolvidos capazes de engajar o público. E, sendo bem sincero, há um que preenche esse espaço de forma para lá de satisfatória: a Melanie. Apesar de ser a antagonista da série, ela funciona quase como uma protagonista, tendo o arco dramático mais consistente e bem desenvolvido, e é em torno dela que giram as questões mais complexas. Assassina e torturadora por um lado, capaz de fazer um ecossistema sobreviver e traumatizada pelas ações que tomou por outro. Somos capazes de entender a personagem do início ao fim, sentir empatia independente de tudo que ela fez. Muito disso passa também pela bela atuação de Connoly, que consegue lidar de forma introspectiva com o mix de sentimentos da personagem. Diz uma coisa, enquanto sente outra, e sente um conforto muito maior em viver quando está isolada e pode esquecer de suas máscaras sociais por alguns momentos.

Porém, o mesmo não pode ser dito dos demais personagens, com exceção de alguns poucos coadjuvantes interessantes, como a Till (Mickey Sumner). No geral, são personagens totalmente unilaterais, que criam uma ideia de bem conta o mal que contradiz a própria figura da Melanie. O auge disso é o Layton (Daveed Diggs), protagonista construído quase como uma santidade, incapaz de tomar decisões ruins, o que o torna em alguém totalmente desinteressante. Isso sem contar a inabilidade da série em desenvolver personagens secundários, prejudicando completamente o drama da série. O melhor exemplo disso são os fundistas mortos na revolução e que a série tenta capitalizar em cima dessa chacina. O problema é que mal conhecemos aqueles personagens, porque sentiríamos algo por eles?

Portanto, o que temos é uma série que até apresenta bons conceitos e uma ótima antagonista, mas se perde em meio a inconsistências e ao romper as próprias regras sem nenhuma razão aparente.

Nota: 4.5

Crítica em vídeo:

Assista abaixo à crítica em vídeo que eu fiz sobre em meu canal, o 16mm.

Assista ao trailer:

Ficha Técnica:

Título original: Snowpiercer (Expresso do Amanhã)
Data de lançamento: 25 de maio de 2020
Elenco:Jennifer Connoly, Daveed Diggs mais
Gêneros: Ficção Científica, Ação
Nacionalidade: EUA