“Não Olhe Para Cima” acompanha dois cientistas tentando mostrar ao mundo que a Terra será atingida por um asteroide que devastará o planeta e toda sua população.
O filme está disponível na Netflix.
A imbecilização do espectador
Adam Mckay aposta na imbecilização do espectador para poder fazer sua sátira política, com pretensões à genialidade, mas que não consegue ir além do óbvio.
Eu não sou daqueles críticos que vê a pretensão de um diretor automaticamente como algo negativo. Pelo contrário, grandes filmes dos maiores cineastas de todos os tempos vieram de escolhas pretensiosas, sejam estéticas, narrativas ou mesmo temáticas. Entretanto, como tudo em um filme, devemos analisar essa visão do diretor e como ele retrata essa ideia pretensiosa.
No caso de Mckay, a pretensão parte do mesmo lugar dos seus dois filmes anteriores, “A Grande Aposta” e “Vice”. O diretor, após fazer uma carreira com comédias mais exageradas, em muitas parcerias com Will Ferrell, ele decidiu que agora se tornará um professor e usará o cinema como dispositivo para ensinar ao público sobre questões relevantes do mundo.
Porém, se em “A Grande Aposta” o formato funcionava, primeiro por trabalhar um assunto bem mais específico e de difícil compreensão por parte da maioria do público, segundo pelo diretor empregar bem e como novidade a sua narrativa espertinha cheia de interrupções e piadas (como esquecer a explicação de Margot Robbie na banheira?), em “Vice”, tudo já parecia apenas uma repetição menos inteligente do longa anterior, apesar de alguns momentos bastante perspicazes (como o casal recitando Shakespeare na cama ou os créditos no meio do filme).
Já em “Não Olhe Para Cima”, a narrativa satírica de Mckay não só já está completamente batida, como o diretor parece se achar ainda mais genial e capaz de relatar os problemas do mundo para os menos esclarecidos. Para piorar, o cineasta fala apenas para aqueles concordam com ele (me incluo nisso) da forma mais óbvia possível.
O que o filme não é
E aqui farei uma pausa para rebater três argumentos muito frequentes defendidos por aqueles que amaram o filme. O primeiro diz respeito ao filme ser “esclarecedor sobre o mundo que a gente vive”, o que eu discordo completamente, já que Mckay está muito mais interessado em ridicularizar os imbecis negacionistas climáticos e em assuntos relacionados a vacina, do que em realmente mostrar algum caminho para essa realidade sombria em que vivemos. Jamais alguém que acredite naquelas baboseiras assassinas de anti vax, globalismo e coisas do tipo vai assistir a esse filme e descobrir que está sendo um idiota ao defender essas ideias. O filme é claramente feito para nós, que concordamos com a visão do diretor rir do absurdo que são essas pessoas, mas fica difícil achar algo engraçado quando a vida real já é um circo de horrores muito maior do que qualquer sátira é capaz de criar.
Segundo, também discordo completamente daqueles que dizem “é apenas uma comédia despretensiosa”. Tudo que “Não Olhe Para Cima” não é é despretensioso. Fica claro ao longo de todo o filme a necessidade do diretor de parecer inteligente, seja nas piadas ou ao explicar essas piadas (ponto que voltarei mais para frente).
E, então, o terceiro argumento (que eu nem deveria perder tempo me defendendo) de que “quem não gostou do filme compactua com trumpismo, bolsonarismo, negacionismo e todas as ideias de extrema-direita espalhadas por aí”. Esse argumento não faz qualquer sentido, já que, como eu sempre digo, muito mais importante do que o tema de um filme é como esse tema é trabalhado. Ou seja, é muito mais sobre o “como conta uma história” do que sobre “o que contar”.
Explicando as piadas
Dito tudo isso, volto agora ao argumento inicial e que para mim é o que faz de “Não Olhe Para Cima” uma péssima sátira. Para poder parecer inteligente, Mckay tenta imbecializar o público (o que pode até funcionar com quem assiste ao filme de forma mais despretensiosa e menos crítica). Dessa forma, ele não só faz as piadas, mas ele faz questão de explicar todas as piadas para mostrar o quão inteligente elas são, tratando assim o espectador como se fosse incapaz de compreender a piada inicialmente, um erro de principiante para qualquer roteirista/diretor, e que, na minha visão, acaba sendo ofensivo com o público, além de destruir o humor das poucas piadas interessantes do longa.
Claro que comparar filmes geralmente não é uma boa ideia em uma crítica, mas há um caso específico aqui que esclarece bem a fragilidade do texto e da direção de Mckay e reforça o que eu acabei de dizer no parágrafo de cima. Em determinado momento do longa, os personagens decidem mandar um foguete para o espaço para destruir o asteroide e, imediatamente, a presidente fala sobre enviar um membro da velha guarda do exército dentro, mesmo com o cientista deixando claro que o foguete poderia ser controlado remotamente da terra, sem a necessidade de alguém morrer na missão. Nesse momento, um terceiro personagem diz “Washington sempre quer um herói”, como se essa provocação já não tivesse ficado clara anteriormente.
Crítica semelhante é feita no genial “Dr. Fantástico”, de Stanley Kubrick, em que o cineasta, sem precisar recorrer a diálogos, coloca um coronel do exército em cima de um míssil nuclear, com um chapéu de cowboy e gritando “ihaaaa”, para morrer como herói, sendo que ele estar ou não ali não faria qualquer diferença para o resultado do míssil.
É esse tipo de sutileza que falta para “Não Olhe Para Cima”. O fato de uma sátira permitir o absurdo como uma forma aceitável não quer dizer que tudo precisa ser dito ou completamente explícito. Mckay se apoia nessa possibilidade da sátira como muleta para parecer mais inteligente do que realmente é e, ao mesmo tempo, criar personagens óbvios o suficiente para não restar dúvidas de que o público vai compreender a mensagem.
Então, Merry Streep vive uma espécie de Trump/Bolsonaro, Leonardo Dicaprio e Jennifer Lawrence são os cientistas que mostram fatos, mas são tratados como agentes do caos (a semelhança física de Lawrence no filme com a brasileira e genial Natalia Pasternak pode ou não ser mera coincidência), Cate Blanchett e Tyler Perry os sensacionalistas que vivem de fofocas e fazer piada com o que não é piada, Ariana Grande a celebridade fútil, Jonah Hill o filho estúpido que só tem cargo no governo por causa da mãe (algo que acontece também tanto com Bolsonaro quanto com Trump), e por aí vai.
Fica até difícil culpar as atuações, já que elas são apenas fruto de uma visão criativa óbvia e que exagera como forma de tornar tudo ainda mais óbvio. Alguns, como Dicaprio, Lawrence, Streep, Blanchett e Timothee Chalamet até conseguem contornar um pouco os péssimos diálogos e a caricatura dos personagens.
E, nesse momento, se você chegou até aqui, pode ser que esteja dizendo “mas o público é burro e não consegue compreender sutilezas” ou “mas esses negacionistas só compreendem a mensagem se ela for super óbvia”. O primeiro argumento eu nem preciso rebater, por que se você diz isso é apenas pura arrogância da sua parte, o segundo volta ao que eu já falei anteriormente, esse filme não é feito para essas pessoas, mas, sim, para nós rirmos delas, e ao nos tratar como imbecis incapazes de reconhecer simples mensagens, Mckay está nos igualando a trumpistas, bolsonaristas e cia no que diz respeito à falta de capacidade cognitiva.
Machismo não-intencional
E se não bastasse Mckay atirar no próprio pé ao idiotizar o seu público que concorda com sua visão política, o longa ainda repete a dose ao criticar o machismo da sociedade americana, por exemplo quando o público reage com memes ofensivos e misóginos à reação da personagem de Lawrence no programa de TV, mas não percebe que a condução da narrativa e construção de personagens são para lá de machistas também.
Analisemos então as principais personagens femininas do longa. A primeira presidente dos Estados Unidos, o que seria um feito histórico, é uma imbecil e criminosa comparada a Trump. A cientista que é a personagem mais inteligente do longa é completamente abandonada pela narrativa, enquanto esta prioriza o cientista homem. A esposa deste mesmo cientista é só a dona de casa que aceita numa boa a traição do marido. A apresentadora de TV reforça o estereótipo da interesseira egoísta que transa por interesse. Ainda há chefe da NASA que é um desqualificada que só chegou ao cargo por conchavo, a que faz parte do gabinete da presidente que só está no filme para fazer comentários sexuais com que ela já transou, e por aí vai.
O desastre de “Não Olhe Para Cima” só não é completo porque pelo menos Mckay tem algumas boas ideias em como ironiza o filme catástrofe e como a sociedade atual reagiria a isso, ainda que essa ideia seja boa apenas na premissa e sofra dos mesmos problemas de desenvolvimento do restante.
Nota:
Assista a minha crítica em vídeo:
Assista ao trailer:
Ficha Técnica:
Título original: Don’t Look Up
Data de lançamento: 24 de dezembro de 2021
Direção: Adam Mckay
Elenco: Leonardo Dicaprio, Jennifer Lawrence, Merryl Streep
Gêneros: Sátira
Nacionalidade: EUA