“Rebecca – A Mulher Inesquecível” adapta o livro de Daphne du Maurier, que já foi adaptado para o cinema por Alfred Hitchcock, em 1940. Nele, uma jovem acompanhante de uma mulher rica viaja para a Europa e conhece um viúvo milionário, pelo qual se apaixona.

O filme está disponível na Netflix.

Remake injustificável

Em 1998, o cineasta Gus Van Sant recriou “Psicose” quase que quadro a quadro, o que resultou em um fracasso histórico, tanto de público quanto de crítica. A justificativa do diretor, grande fã de Alfred Hitchcock, era a de “apresentar o clássico a um novo público que não o conhecia”. Essa obra deveria ter deixado claro de uma vez por todas que não se refaz filmes dessa forma e sob esse pretexto. Só existiu um Hitchcock e tentar recriar seus longas não fará o público atual se interessar pelo diretor, apenas evidenciará ainda mais a falta de criatividade que impera em Hollywood.

Só que era óbvio que não demoraria muito tempo até que mais um diretor se arriscasse a homenagear o mestre do suspense de forma semelhante. Eis que surge Ben Wheatley e seu novo “Rebecca – A Mulher Inesquecível”, remake de um filme que ganhou o Oscar de Melhor Filme e marcou a primeira obra hitchcockiana realizada em Hollywood. É bem verdade que o novo longa da Netflix não se iguala ao de Van Sant ao copiar o original, mas nem por isso a obra de Wheatley tem mais alma do que aquela de 1998.

“Rebecca”, de 2020, não tem vergonha de deixar claro desde os primeiros segundos que é uma homenagem ao de 1940. Não só os acontecimentos são iguais como até linhas de diálogos são copiadas do original. Então, como pode um filme ser igual a outro e ao mesmo tempo ser tão inferior? Tal possibilidade acontece justamente porque um filme é muito mais do que apenas um roteiro (daí parte a importância dada ao diretor e a outros profissionais em uma produção cinematográfica) e um roteiro não é só acontecimentos e diálogos.

Então, o longa de 2020 tem sim praticamente todos os mesmos acontecimentos, mas isso não quer dizer que tudo acontece da mesma forma. Vejamos por exemplo a cena em que a futura Mrs. De Winter quer encontrar Maxim para dizer que está indo embora repentinamente da Europa. Em 1940, Hitchcock não tem medo de alongar a sequência por vários minutos, em uma sucessão de tentativas da personagem se desvencilhar da Mrs. Van Hopper, criando assim uma angústia crescente no público, que acredita até o último instante que a garota não conseguirá avisar o seu amado. Essa sequência brilhante do filme clássico é transposta para cá em duas cenas curtas em que a moça logo encontra o seu amante sem nenhum empecilho no meio do caminho.

Critica Rebecca A Mulher Inesquecivel Netflix 2

Tal sequência é apenas um dos vários exemplos que poderiam ser citados para evidenciar a falta de atmosfera do remake. Não me leve a mal, o novo “Rebecca” não é um filme sem alma apenas por se assemelhar muito ao de 1940 em situações, mas sim porque não há nenhuma relação dramática por trás de suas cenas. Todas começam e terminam, sem nenhuma continuidade, apenas para preencher um protocolo. E, mais do que isso, a inabilidade de Wheatley em construir suspense é tão gritante que ele abandona a proposta do original de ser um romance gótico com muitos elementos de thriller psicológico para se transformar em um romance melodramático que tenta ser suspense, mas nunca chega nem perto disso.

Isso é evidenciado principalmente na figura da Rebecca, a falecida personagem que dá nome ao filme e atormenta a vida daquele casal só pelo fato de ter existido. Mesmo morta, sua presença parece nunca ter abandonado a mansão, ainda que não exista nenhum fantasma ali. É a lembrança dela que faz com que nenhuma pessoa que ali viva deixe Mrs. e Mr. De Winter esquecerem que Rebecca habitou o local e o domina até hoje. Isso é sentido principalmente na figura da devota e aterrorizante Mrs. Danvers. Claro que tudo que disse sobre a personagem-título se refere ao longa de Hitchcock, já que o novo nem deveria se chamar “Rebecca – A Mulher Inesquecível”, pois ela pouco influencia a vida do casal.

Mas, sendo justo, a Mrs. Danvers de Kristin Scott Thomas é bastante interessante, ela consegue conservar a essência da personagem e ao mesmo tempo ter uma identidade própria. O mesmo não pode ser dito do resto do elenco, apesar desse estar recheado de bons atores.

Diferenças

Não sei se fui claro até agora, mas o problema de “Rebecca” (2020) não são as diferenças ou semelhanças com o original. Um remake pode ser muito bom sendo estritamente parecido com o anterior ou criando uma narrativa completamente nova. Basta que essa obra conte uma história porque tem algo de novo a dizer, nem que essa novidade seja apenas uma nova abordagem para os mesmos acontecimentos (como ocorre em “Invasores de Corpos”, que citei nesta lista de ótimo remakes). O problema da obra de Wheatley é que ela se aceita apenas com uma homenagem vazia.

Entretanto, se eu dissesse que o cineasta não tenta imprimir sua visão em nenhum elemento do longa, eu estaria cometendo uma injustiça. Há sim alguma autoria na obra de 2020, ainda que nem todas essas escolhas sejam benéficas. A começar pela alteração da personalidade da protagonista no terceiro ato, tornando-se muito mais ativa do que aquela interpretada por Joan Fontaine, que funciona no filme de Hitchcock, mas soaria um pouco ultrapassada atualmente se mantida da mesma forma.

Porém, o tom mais pessoal de Wheatley aparece muito mais em elementos estéticos, principalmente a direção de arte, o figurino e a trilha sonora. Os dois primeiros funcionam como elemento de renovação, até por ser um filme colorido, enquanto o antigo era em preto e branco. Destaque para o vestido vermelho que ganha um importância na trama. Já a trilha se diferencia completamente daquela de 1940, que era bela e aterrorizante, enquanto a do longa atual busca uma ideia de romance clássico. Apesar de funcionar dentro da proposta de melodrama romântico que o cineasta busca, ela também atrapalha o suspense, que o remake é incapaz de criar.

Dessa forma, “Rebecca” deixa claro mais uma vez que remakes feitos apenas para homenagear um filme clássico ou usar como desculpa a ideia de “apresentar à obra a um novo público” quase nunca funcionam, principalmente quando se tenta refazer Hitchcock. Isso deveria ter sido aprendido com “Psicose”, de 1998.

Nota: 4.0

Assista abaixo à crítica em vídeo que eu fiz do filme em meu canal, o 16mm.

Assista ao trailer:

Ficha Técnica:

Título original: Rebecca
Data de lançamento: 20 de outubro de 2020
Direção: Ben Wheatley
Elenco: Lily James, Armie Hammer, Kristin Scott Thomas, Ann Dowd
Gêneros: Romance, suspense
Nacionalidade: EUA