A Academia apresentou, no começo desse mês, novas regras de representatividade para o Oscar de Melhor Filme, que passarão a valer a partir de 2024. A partir disso, a internet virou um caldeirão. De um lado, muitos defenderam as mudanças argumentando que elas tornariam o cinema mais inclusivo e seriam uma resposta positiva a edições como a do Oscar So White. Por outro, diversas pessoas acusaram a Academia de censura, já que teoricamente essas regras impõe restrições aos filmes, como temas e elenco.

Mas a verdade é que muita desinformação vem surgindo sobre o tema (não citarei as fontes por questões éticas), e, por isso, decidi escrever esse texto para esclarecer alguns dos pontos centrais dessas mudanças. O primeiro e mais importante é que não há qualquer tipo de censura, já que a Academia apresentou quatro tópicos, mas apenas dois precisam ser respeitados. Abordarei todos individualmente a seguir, mas deixo o vídeo do Waldemar Dalenogare para quem quer entender mais profundamente essas regras.

Vale destacar que essas estão longe de serem as primeiras regras impostas pela Academia. Por exemplo, atualmente um filme precisa ficar nos cinemas de Los Angeles por uma semana pelo menos para poder concorrer ao Oscar do ano seguinte (exceção feita às categorias de Filme Internacional e Curtas).

Além disso, as novas normas só valem para a categoria de Melhor Filme. Ou seja, se uma produção descumprir mais de dois desses quatro tópicos, ela ainda pode ser indicada nas outras categorias. Mais importante ainda é que isso tudo só passará a valer a partir de 2024, o que dá uma margem de quatro anos para as distribuidoras/produtoras se organizarem para preencher os pré-requisitos.

E, por fim, não há dificuldade nenhuma em cumprir esses quatro tópicos e é isso que mostrarei em seguida. Na verdade, a maioria das produções já o respeitam.

As 4 regras

1 – Representatividade na tela

Elenco ou temática da narrativa devem apresentar pelo menos uma das três categorias:

  • Pelo menos um ator principal ou coadjuvante ser de um grupo étnico subrepresentado
  • Ao menos 30% do elenco representado por um dos quatro grupos (mulheres, grupos raciais ou étnicos, LGBTQ+, pessoas com deficiência física ou cognitiva)
  • Narrativa que aborda um ou mais desses quatro temas

2- Diversidade nos departamentos criativos

Deve ser seguido ao menos um dos três critérios:

  • Diversidade nos principais departamentos (direção, roteiro, fotografia, montagem, etc)
  • Pelo menos seis pessoas de departamentos técnicos devem ser de grupos raciais ou étnicos pouco representados
  • Diversidade em ao menos 30% da equipe total da produção

3- Acessibilidade e oportunidade na indústria

Programas de estágios, cursos e seminários de cinema para promover esses temas.

4- Acessibilidade e oportunidade na indústria

Diversidade nos estágios de distribuição e marketing.

oscar

As mudanças são positivas?

Definitivamente as novas regras não são negativas. A indústria cinematográfica hollywodiana e mundial historicamente dá muito pouca oportunidade para pessoas que não sejam homens brancos héteros. Vários estudos já mostraram um desequilíbrio entre a população norte-americana e sua representação no cinema racial, étnica, de gênero etc.

Isso fica claro no estudo de 2018 da USC (Universidade do Sul da Califórnia). Analisando os 1200 filmes mais populares do país entre 2007 e 2018, a análise mostra que mulheres, pessoas com deficiência e latinos são os mais afetados se relacionarmos com o quanto representam da sociedade norte-americana. Levando em consideração “personagens com fala”, as mulheres foram 33,1%, pessoas com deficiência 1,6% e latinos 5,3% desses personagens. Entretanto, esses grupos representam 50,8%, 27,2% e 18,3% da população do país, respectivamente.

O estudo ainda faz o comparativo com os anos anteriores, mostrando um aumento quase nulo em 2018. Além disso, ele aborda outras questões importantes quanto a essa desigualdade na indústria, como a participação desses grupos em outras áreas da produção, como a mulher e o homem são mostrados diferentes em relação ao sexo nos filmes, entre outros temas. Vale a pena conferi-lo na íntegra.

A mudança acontecerá realmente?

Então, é sim necessário uma maior representatividade na indústria, tanto em temas de filmes, quanto em equipe de produção, distribuição e todas as demais áreas.

Entretanto, ao contrário de meus colegas mais otimistas, acredito que essa mudança está longe de ser tão grande quanto parece e é possível “burlar” a proposta de aumento de diversidade. Uso a palavra “burlar” entre aspas, pois não há como deixar de cumprir dois dos quatro tópicos se quiser ser indicado a melhor filme, porém, tem como contornar essas regras e conseguir uma nomeação sem mudar praticamente nada do que já vem sendo feito.

Para começar, praticamente todos os estúdios e distribuidoras já cumprem o tópico “3”, até porque não há dificuldade alguma em realizá-lo. Além disso, o tópico “4” também é bem simples de colocar em prática, ainda que esse seja mais vantajoso por dar mais oportunidades para minorias.

Outro ponto relevante é que algumas áreas já são bastante preenchidas por mulheres, como figurino, maquiagem, direção de arte e montagem. Isso é ótimo, claro, mas também já cumpre boa parte do tópico “2”. Então, mais uma vez, é possível respeitar outro ponto sem que mais oportunidades sejam dadas, nem para mulheres em outras áreas criativas, nem para os demais grupos em todas as áreas da produção.

E, por último, são recorrentes os filmes que abordam temáticas representativas de maneira extremamente pobre sem nem sequer ter pessoas desses grupos em outros estágios da produção. Um bom caso recente é “Green Book” que se usa da ideia de combate ao racismo para na verdade contar a história de um homem branco que aprendeu a não ser racista. Esse filme tinha apenas uma pessoa negra, Octavia Spencer, como produtora e nenhuma nas principais áreas da produção. Ainda assim, seria uma obra que cumpriria o tópico “1”.

oscar 1917

Alteração na qualidade das obras?

Um dos argumentos mais recorrentes contrários às mudanças é de que elas prejudicarão a qualidade do filme ou que obrigariam a adicionar pessoas desses grupos em contextos que não faria sentido. Há um texto de um grande site brasileiro (o qual não citarei também por ética profissional, apesar da minha vontade de expor a falta de compromisso com a verdade desse colunista) que chegou ao ponto de dizer que filmes como “1917” e “O Irlandês” não estariam qualificados nas novas regras.

E, ainda segundo esse texto absurdo, a partir de agora, filmes de temas específicos como Primeira Guerra Mundial e Máfia (ambientes historicamente masculinos) teriam que forçar a entrada de personagens femininas na trama. Isso é uma mentira! Até os exemplos citados não correspondem a realidade, ambos os filmes seriam sim aptos a concorrer, pois, apesar de não se enquadrarem no ponto “1”, respeitam os demais tópicos.

Então, é preciso ter honestidade e estudar o assunto proposto para entrar nesse debate. Ao contrário disso, veículos grandes se apegaram apenas ao tópico “1”, como se ele fosse o único importante e que valesse nas novas regras. Como consequência, os desavisados compraram esse discurso e é notável o número de pessoas que compartilha isso nas redes sociais (há também, claro, aqueles que nem leram a proposta e já saíram querendo se posicionar, como sempre).

Portanto, é preciso ressaltar que essas regras em nada alteram a qualidade de um filme. O tópico “1” é importante, mas ele não será respeitado sempre, seja em filmes em que a representatividade criaria incongruências históricas ou não. Ainda assim, duas ou mais das demais regras estariam sendo colocadas em prática, o que, teoricamente, é um grande avanço.

Conclusão

Dessa forma, as novas medidas da Academia são em teoria muito boas. Promovem mais do que apenas representatividade temática, mas também criam oportunidades de trabalhos na indústria para esses grupos, o que no fim das contas é o que a luta por igualdade busca.

Porém, infelizmente, é possível cumpri-las sem nenhuma grande mudança na forma como os filmes são feitos atualmente. Então, no final, vai partir dos estúdios e produtoras utilizá-las como uma grande ruptura ou apenas respeitá-las pontualmente para poder concorrer a Melhor Filme.

De qualquer forma, não há nada de negativo nessas regras. Elas podem ser muito positivas ou pouco positivas, vai depender da ética de cada estúdio.