“A Origem” conta a história de uma equipe, liderada por Cobb, que tem a missão de “implantar” uma ideia na cabeça do filho de um magnata por meio uma sugestão em sonhos. Para isso, eles deverão passar por diferentes camadas de sonho, que vão se aprofundando cada vez mais, pois essa ideia tem que ser implantada em um camada mais profunda.
Narrativa de vídeo game
O que mais me encanta em “A Origem” é como Christopher Nolan está muito mais preocupado em construir o seu universo do que com o resultado final da missão. É um filme que segue o modelo clássico do objetivo a ser cumprido pelo protagonista e seus adjuvantes, entretanto, o que parece ser o foco narrativo na verdade serve apenas como um mcguffin para a trama se desenvolver em fases e sequências de ação grandiosas.
Na verdade, esse é um dos filmes que melhor desenvolve uma narrativa de vídeo game, se estruturando por meio de fases (cenas de ação) e cut scenes (exposição). É justamente nessas sequências que o longa cria o seu universo, apresenta exposição e desenvolve sua trama e não ao contrário, algo que se assemelha muito às cut scenes de um game que surgem para complementar os momentos jogáveis.
Então, como em qualquer bom jogo, a equipe avança pelas fases (camadas de sonhos) e quanto mais próximo chegam de seu objetivo mais difícil fica, graças a uma série de capangas genéricos (que aqui são os mecanismos de defesa do subconsciente) que só estão lá para tornar a missão mais complicada e empolgante.
Entretanto, não são só os “vilões” que remetem aos jogos, todos os personagens secundários vão ser gamificados, funcionando apenas como peças para o objetivo do protagonista. Não sabemos nada sobre o passado deles e todos tem apenas uma função específica no grupo, como ser “o ladrão” ou “a arquiteta”.
O único que conhecemos as motivações, o passado e a psicologia é Cobb (Leonardo Dicaprio), como se espera de um protagonista tanto de game quanto de filme. E sua história também vai estar interligada às longas sequências dos sonhos. Ao passo que o grupo avança rumo ao seu objetivo, nós nos aprofundamos mais na mente do personagem. Por isso até, a teoria mais aceita é a de que tudo é um sonho e Cobb é incapaz de retornar a realidade. Ser tudo criação da cabeça dele justificaria ainda mais a simplicidade tanto do seus parceiros quanto dos seus rivais.
A ação, tempo e exposição
Mas, diferente de obras como “Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge”, que são megalomaníacas por puro delírio de grandeza e sem nenhuma justificativa plausível, em “A Origem” o diretor consegue combinar essa grandiosidade com os conceitos do seu universo. Ao mesmo tempo que ele apresenta regras sobre como funciona essa viagem pelos sonhos, esse mundo apresenta infinitas possibilidades, com uma constante desconstrução do espaço, seja quando um sonho colapsa ou se ele sofre influência de uma camada menos profunda (como na brilhante cena do corredor), já que tudo é moldado pelo subconsciente humano.
Assim, a transição entre diferentes cenários (de um hotel de luxo para uma instalação em uma montanha coberta de neve, por exemplo) não causa estranheza no público. Até porque, o diretor volta a ter a questão temporal como crucial na trama, assim como já fez de forma eficiente no excelente “Amnésia”, no fraco “Interestelar” e com menos consistência no razoável “Dunkirk” (vale lembrar que o novo filme do diretor, “Tenet”, também deve apresentar uma forte relação com o tempo).
Aqui, o diferente funcionamento do tempo em cada uma das camadas de sonho permite ao diretor criar tensão com um uso aparentemente simples da montagem paralela. Somos levados de uma fase a outra da missão que acontecem simultaneamente, mas não com a mesma velocidade, o que nos prende até o último minuto com a expectativa de que aquelas diferentes camadas vão conseguir sincronizar as suas ações cruciais.Até boa parte das explicações que o filme fornece aparecem durante as cenas de ação, quando o grupo tem que constantemente improvisar e testar novas possibilidades daquele universo, com exceção das que eu chamei acima de “cut scenes”.
Mas, ao contrário de outras obras do diretor (como a ridícula cena de “Interestelar” em que um cientista da NASA explica para o outro o que é buraco de minhoca, algo que os dois obrigatoriamente já deveriam saber), em “A Origem” Nolan não pode ser criticado pela exposição, já que o excesso dessa não é necessariamente um problema, mas sim a forma como ela construída. E aqui ele usa um recurso super batido, mas que ainda é bastante funcional: a introdução da novata (Ellen Page). Assim, é plausível que os veteranos tenham que explicar para ela as regras daquele universo totalmente distante da nossa vida comum, e, enquanto ela aprende sobre aquele mundo, o público também recebe aquelas informações.
Questão técnica e mise en scène
A “Origem” é também um dos filmes em que o diretor melhor trabalha elementos técnicos constantes em sua filmografia, pois aqui eles dão vida a esse universo. Então, a trilha sonora do sempre brilhante Hans Zimmer faz uma excelente transição entre as diferentes camadas, assim como os efeitos sonoros (o “baum” que virou clichê em hollywood depois desse filme) trazem um tom mais artificial e de perigo para esse mundo imaginário, enquanto a bela música de Edith Piaf adentra a diegese e as diferentes camadas para criar a unidade sonora do longa.
Além disso, destaque para o incrível design de produção, que não são é grandioso como eu já disse anteriormente, mas também é responsável por nos fazer acreditar que aquele universo distante é mesmo possível. E o uso de mais efeitos práticos do que digitais (algo que o Nolan sempre prioriza) traz realismo para o absurdo, como na já citada cena do corredor do hotel, em que o local entre em gravidade zero e tudo começa a sair do lugar.
Entretanto, há um problema recorrente na filmografia do diretor e que volta a se repetir aqui. Se eu elogiei a forma como o filme se estrutura por meio de sequências de ação simultâneas, isso está muito mais relacionado ao ritmo, à tensão e a grandiosidade delas, pois a mise en scène dessas é muito mal construída. Constantemente perdemos toda a noção da geografia de cena, não sabemos onde os personagens estão situados e quem está atirando em quem. Cria-se uma bagunça não intencional que confunde o nosso cérebro, o que é resultado da constante quebra do eixo de 180º, que adiciona ao ritmo, mas faz com que a gente perca a clareza da cena, algo necessário em uma obra audiovisual.
Semelhanças com Ilha do Medo
Eu não poderia finalizar essa crítica sem citar algo que sempre me despertou muita curiosidade: a semelhança entre “A Origem” e “Ilha do Medo” (assista à crítica em vídeo deste). Ambos foram lançados no mesmo ano, o que exclui qualquer possibilidade de um ter copiado o outro, e têm Leonardo Dicaprio como protagonista.
Nos dois, o personagem principal vive fugindo de sua realidade, construindo uma narrativa alternativa que o tira da vida real. E essas histórias criadas por ele passam a ser sua realidade. Além disso, a figura do mulher vilanizada e dos filhos inocentes o afasta ainda mais do mundo real. Até a forma como Nolan e Martin Scorsese filmam a chegada dos personagens em suas casas, com um gramado iluminado pelo sol no fundo e uma paleta de cores quentes, assemelha-se muito.
A grande diferença é a decisão final dos personagens, em “Ilha do Medo” ele aceita a sua condição de loucura e se entrega à lobotomia, enquanto em “A Origem” o Cobb prefere seguir vivendo em sua realidade alternativa.
Nota: 9.0
Assista ao trailer:
Ficha Técnica:
Título original: Inception (A Origem)
Data de lançamento: 12 de agosto de 2020 (Estreia comemorativa de 10 anos)
Direção: Christopher Nolan
Elenco: Leonardo Dicaprio, Ellen Page, Marion Cotillard mais
Gêneros: Ação, Ficção Científica
Nacionalidade: EUA